Na Folha de domingo 22/09, coluna da Mônica Bergamo: Milton Nascimento disse que não tem sentido vontade de compor, o mundo não o inspira e o mainstream nacional está uma merda, com músicas e letras porcarias.
Essa fala tirada do contexto de seu desânimo com o mundo foi polemizada à exaustão nas redes sociais.
Li a entrevista e a minha interpretação é de que ele não reclama exclusivamente das melodias binárias e letras paupérrimas (de conteúdo e de métrica).
Ele fala de um aspecto que as pessoas que criticaram, ou, apoiaram em superfície a sua fala não deram atenção, “Não sei se o pessoal ficou mais burro, se não tem vontade [de cantar] sobre amizade ou algo que seja. Só sabem falar de bebida e a namorada que traiu. Ou do namorado que traiu. Sempre traição.”
A amizade, a fraternidade são forças motrizes em sua obra; não à toa que ele compôs grandes sucessos em parceria com Lô Borges, Tavito, Beto Guedes, Wagner Tiso, Flávio Venturini e etc. Quem tiver a oportunidade de ler o livro do Márcio Borges (irmão do Lô) Os sonhos não envelhecem, perceberá um laço que os une desde antes de caírem na estrada, vivendo de música.
Temos que analisar a fala dele sem paixões e juízos de valores. Analisando o contexto histórico e social de quando ele começou e de agora.
Anos 60 e 70, o chumbo era grosso no Brasil e no mundo, porém a geração Beat e o Flower Power influenciaram diretamente a juventude da época. Em que pese as limitações e guardadas as devidas proporções de tempo-espaço, parecia haver uma concepção coletiva de solidariedade: contra a guerra, no Brasil os artistas e intelectuais contra a ditadura e a censura; os alucinógenos eram usados para a expansão da mente, para “espalhar o amor por aí”, a estética artística absorveu tudo isso. O requebrado, a mini saia, o biquíni e o iê iê iê vieram pra desafiar o status quo.
Século XXI: internet, Estado ausente nas periferias, o individualismo exacerbado através das customizações e o agravamento do analfabetismo dos jovens com o analfabetismo funcional, progressão continuada, um cenário aterrador. Apesar de 98% das crianças estarem matriculadas, mal conseguem executar as 4 operações básicas matemáticas, interpretam uma oração simples com muita dificuldade, mal conseguem escrever o nome, são autômatos.
Fé cega, faca amolada.

Vinte anos assim, os frutos ruins estão por todos os lados. Tudo isso abriu espaço pro obscurantismo, pra desinformação e pro fundamentalismo religioso, chegamos ao ponto de ter 11 milhões de brasileiros que teimam em contestar as leis da física, que já foram provadas à exaustão, 600 anos depois dizendo que a terra é plana!
Some a tudo isso o processo de acirramento político, crescente no país desde 2013 e o crescimento da extrema direita no mundo, com ideias xenofóbicas e conservadoras. Sempre priorizamos as afinidades para as amizades, no entanto, hoje queremos estar numa bolha (eu inclusive) em que nossos amigos pensem igual a nós, as divisões estão marcantes. Definimos que o primeiro parâmetro de exclusão é a eleição de 2018, se eu votei em A e você no B, temos diferenças irreconciliáveis. Depois, separamos nossos nichos por etnia, por orientação sexual, por classe social e etc.
O preto não se mistura com o branco e vice versa, o hétero crítica o LGBT e vice versa, o coxinha briga com o mortadela e vice versa…
E assim se vão aprofundando as divisões, além dos transtornos psiquiátricos inerentes à pós modernidade e a solidão que já está se tornando epidemia. Relações líquidas…
A impressão que se tem é de que no passado as pessoas se uniam, apesar das diferenças pontuais, hoje somos cada vez mais fragmentados em nossas diferenças.
Os artistas brasileiros da atualidade, (mesmo os que agregam valor ao cancioneiro nacional) estão completamente imersos em seus afetos e desafetos durante o processo de produção artística. Isso é fruto do contexto histórico e social de agora.
O desgosto do Milton com o mundo é o mesmo que o meu. Ele está triste e desanimado, por ver fatos se repetindo, por estar até pior do que era antes. A um passo da depressão e isso é perigoso e cruel. A tristeza age de formas diferentes em nós; para ele que teve outra vivência, esse sentimento o desmotiva a compor, apesar de cantar para aliviar. Para mim, a tristeza com esses tempos me motiva a escrever, a terapia que dá vazão às minhas angústias.
Vamos estourar a bolha e enxergar a frase dele além do desabafo. Precisamos ler as entrelinhas…