São Paulo, julho de 2020
Dia 106 da Cententena

Depois de 100 dias represando pensamentos e desejos eu não resisti… Primeiro dei vazão a pensamentos nada castos, imaginando situações e pessoas diferentes. Porém, o fogo interior se tornou labareda.
Furei a Quarentena/Cententena, conheci uma pessoa interessante e foi muito divertido. Me senti uma adolescente cometendo pecado, cabulando aula pra namorar, batendo na trave.
Ao mesmo tempo que foi um encontro cândido: beijo, abraço, aperto de mão e uma volta no quarteirão.
Nós dois cheios de vontade de tornar concretos os nossos desejos, mas o medo do Corona, pelo menos naquele date foi maior. Máscaras, olhares e atitudes meio cabreiras no início, afinal namorar na pandemia é atentado ao pudor! Só não beijamos de máscara, fomos pro carro pra ter alguma privacidade, afinal ninguém merece ser alvo de olhares reprovadores só por causa de um beijo.
Antigamente beijar era coisa inocente e corriqueira, quantos não davam beijos desentupidores de pia nos lugares públicos? Beijar nos tempos atuais é equivalente ao exibicionismo na rua. Transgredir as normas, adrenalina a mil e algum peso na consciência, inversamente proporcional ao medo e a culpa é o tesão, acumular experiências peculiares num período peculiar.
Quem me acompanha por aqui deve estar pensando que estou louca, inconsequente e talvez, pense até que eu bati a cabeça na privada. Nos textos anteriores reclamei sobre a falta de um isolamento social real: um misto de falta de respeito, com a falta de ação dos governos para garantir a Quarentena.
A vocês digo, que depois de uma centena cumprindo tudo à risca, de maneira inócua cansa e muito! Estou muito cansada dessas circunstâncias sem previsão de melhora, como se todo o sacrifício emocional, social e financeiro que fiz, em prol do pandemônio, tivesse sido em vão…
O cansaço e a impotência em resolver a situação são sentimentos comuns à maioria dos que ainda estão em casa.
Sinto saudades de ser livre, atualmente minhas saídas são controladas, vigiadas, cronometradas; então não me levem a mal e espero que compreendam, nessa centena de dias todas as emoções ficam à flor da pele e com o tesão não é diferente.
Quanto a conjuntura nacional, está cada vez pior. Mais de 70 mil pessoas tiveram suas vidas interrompidas pela Covid. Esse país é terra arrasada, enquanto maconheiro morre na cadeia por causa de duas parangas, Queiroz e sua mulher foragida ganham prisão domiciliar especial, do juiz que julga a favor de milicianos, interrompeu suas férias só pra isso…
Em SP, os Metroviários que estão expostos ao vírus diariamente, recebem como “prêmio” por trabalharem no front da pandemia, salários com cortes e mais ameaça de perda de direitos e até mesmo do plano de saúde. O emborrachado do Bandeirantes é mais eficiente em jogar a sujeira pra debaixo do tapete, pois toda a imprensa paulista está ao seu dispôr.
Depois de cruzarmos a centena, lembrei de quando havia apenas um caso no país todo, as pessoas saíram espavoridas às farmácias pra comprar máscaras e álcool em gel e por um tempo esse mercado ficou desabastecido e inflacionado. Agora centena de dias depois do início do pandemônio, é comum usar a máscara no queixo. Durante o pandemônio muita gente saindo de casa pra atividades não essenciais, gente dizendo que precisa trabalhar e etc.
No meu bairro a Quarentena só existiu na primeira semana em que foi implementada.
No auge do meu cansaço não julgo mais ninguém e até compreendo o tédio de alguns que como eu, cumpriram a cartilha e agora estão afrouxando as regras do isolamento social.
Hoje não me alongarei nas notícias tristes, a atmosfera está pesada há muito tempo. Vou me lembrar das delícias juvenis que vivi recentemente e reacendeu a minha chama interior… É catártico pensar que nesse momento de banalização das mortes, um beijo causa mais furor que uma vida perdida pra Covid.