São Paulo, julho de 2020.
Dia 110 da “Cententena”.
Nós que nascemos a partir da segunda metade do século passado e ainda estamos aqui, somos privilegiados. Por ter muita história pra contar, viramos o século e um milênio! Creio que nem a geração seguinte contará aos netos que viveu uma transição tecnológica tão intensa como nós.
A música é um bom exemplo dessa adaptação. O primeiro modo de armazenar o som e possível de manusear foi o disco de vinil, produzido em escala industrial; por algum saudosismo ele está voltando.
Mas o LP não permitia gravar em casa e pra resolver essa situação foi inventada a fita K7. Compramos muita “BASF ferro extra 90” pra gravar músicas, ficávamos horas esperando a canção tocar, rezando pro locutor não falar nada durante a música e pra fita não acabar no meio da gravação.
Depois da fita, queimamos CDs (quem tem mais de 25 sabe, que não é literalmente tocar fogo no disco), armazenávamos os MP3 no HD. No início dos anos 2000 a internet era mato e não existia banda larga, internet no celular então… Era viagem de nóia. Aguardávamos ansiosos até a meia noite pra poder usar a internet discada; durante a semana tinha que ser ninja pra não acordar os pais porque de manhã cedo tinha que ir pra escola.
Era um ritual à parte: o PC encapado na sala, o “pin” da BIOS denunciava o equipamento ligando, carregava o “ruindows” e iniciava o discador (eu usava o iBest, o IG era sem condições…) Uma música pros ouvidos quando o fax modem de 56 kbps conectava ao provedor.
Geração Napster, Kazaa, Emule e etc. A gente fazia a festa no compartilhamento P2P, uma semana pra baixar uma música de 3MB! Isso se ao final de todo o trabalho não descobrisse que era um vírus, ou um vídeo pornô. (ooooooooohhhhhhhh)
Agora nem MP3 a gente armazena mais, hoje é tudo bem mais fácil com a evolução da internet, fazemos tudo pelo streaming, na palma da mão, em qualquer lugar, 24×7.
Mas existem coisas que resistem ao tempo, mesmo com alterações. Possuem um charme, uma magia resistente à objetividade dos tempos atuais, justamente por tocarem as emoções humanas, pelas memórias afetivas principalmente as da infância. O rádio é uma dessas coisas, ele continua firme e forte e parece que não vai acabar tão cedo…
Muita gente ainda ouve rádio, é uma companhia em que se conversa com o locutor como se ele estivesse nos ouvindo, há um envolvimento emocional genuíno, isso é muito mágico! Quando a pessoa sai de férias e outra assume temporariamente o programa a gente acha super estranho. Apesar do Instagram hoje em dia, ainda imaginamos como a pessoa deve ser por causa da sua voz.
O rádio se parece muito com um livro, pela locução, canções, ou notícias, a gente viaja sem sair do lugar.
Quando eu era pequena via bastante televisão, mas, não lembro de nada muito marcante ou especial, as minhas memórias infantis e juvenis são muito relacionadas ao rádio. Quando eu tinha uns 5,6,7 anos, as pessoas ouviam muito rádio AM, minha mãe por exemplo.
Me recordo nitidamente da cena, enquanto eu brincava, ela passava roupa ouvindo a Rádio Globo AM, de manhã o show do Paulo Lopes, à tarde Eli Correia, o homem sorriso do rádio (oiiii genteeeee!) e suas histórias arrepiantes no “que saudade de você”, no final da tarde o Gilberto Barros (me faz um carinho!) 18h a Ave Maria e minha mãe desligava o rádio. Meu pai chegava em casa e o substituía pelo som da TV.
Começo dos anos 90, 4h30 da manhã, o rádio relógio despertava e meu pai acordava pra ir trabalhar, nesta época ele entrava muito cedo no serviço. 4h30 da matina e o finado Gil Gomes rasgava as ondas da amplitude modulada, contando seus causos medonhos.
Depois de algum tempo, meu pai resolveu ouvir coisas “mais amenas” e começou a trabalhar um pouco mais tarde. 5h30 da madrugada, o relógio despertava na hora do Pulo do Gato da Rádio Bandeirantes, a vinheta, o gato miando e a voz marcante do locutor. Muitos anos depois, descobri que esse locutor era o José Paulo de Andrade, chegou apresentar jornais na TV Bandeirantes, e em 2018 o Pulo do gato virou livro, estava há 45 anos no ar despertando gerações.
Há muitos anos não ouço rádio AM e muito menos tenho ouvido rádio tão cedo. Mas recebi com imensa tristeza a notícia de que essa grande voz se calou, e pior, o José Paulo foi mais uma vítima da Covid.
Escrevo esse texto realmente consternada, por todas as lembranças que esse aparelho suscita, a voz, o script, as vinhetas, os jingles. Lembranças de um tempo tão bom… Sinto tanto por mais um, que mesmo não conhecendo pessoalmente, fez parte da minha vida.
Não me lembro do que ouvi há 5 dias, mas me lembro desse hábito diario de 30 anos atrás, da sua voz, conhecida como o canhão do rádio, trovoando junto com os primeiros raios do alvorecer.
O rádio me encanta e vou escrever mais sobre ele depois. Por ora, como forma de homenagem, dedico este texto à memória de José Paulo de Andrade.
Obrigada por tudo! Vai na paz!

2 respostas em “Flutuando nas ondas do tempo (e do rádio)”
“Flutuando nas ondas do tempo (e do rádio)” foi a verdadeira viagem no tempo…
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Obrigada!😃
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